Contributo de José Castro Caldas, Economista, Investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, In BLOCO DE ESQUERDA
Caminhamos depressa para uma sociedade de nós e eles, outra vez. Nós têm acções, obrigações, títulos, são gerentes da finança. Eles têm emprego, quando têm. Trabalham para nós, e nós dão-lhes ou prometem-lhes trabalho. Nós ralam-se por não saber o que fazer ao que sobra depois de pagar o salário a eles. Eles angustiam-se por não poder realizar os desejos que o rendimento do trabalho prometia e têm medo da pobreza. Nós entregam fortunas a quem se ocupe delas e não se importam de pagar muito bem por isso. Eles sonham a crédito e pagam juros. As fortunas de nós viajam leves ao cheiro do valor mais alto. Eles têm os pés na terra, raízes, afectos.
Olhamos para os números. Nos últimos anos crescimento da finança, aumento da desigualdade na repartição de rendimento entre o trabalho e o capital, mais desigualdade nos rendimentos salariais. Perguntamos porquê e descobrimos: é a liberdade de movimentos dos capitais. O leilão tornou-se global - um quem pede menos generalizado por parte de Estados e de empresas que empurra os salários, os impostos sobre os rendimentos do capital, a protecção social e os serviços púbicos, para baixo.
A liberdade de movimentos de capitais produziu uma economia e uma sociedade insustentáveis. Agora quem não sabe é porque não quer ver: não pode ser estável a economia em que crescem os rendimentos dos que poupam e diminuem os dos que consomem. Não pode ser sustentável a produção que se esgota com um consumo alimentado a crédito. Essa economia cria uma sociedade de nós e eles, que não pode ser sustentável.
Vivi numa dessas sociedade, com uns nós e eles claramente separados, e sei do que estou a falar. Nós, eram meia dúzia nesse tempo. Eles, os outros, muitos mais. Nós eram proprietários, profissionais liberais, altos servidores do Estado. Eles tinham os pés na terra, trabalhavam com instrumentos primitivos e usavam os próprios corpos e os animais como força de tracção. Os mais felizes dentre eles tinham alguma pouca terra a que chamavam sua, mas muitos pagavam rendas a nós, ou trabalhavam para nós em troca de uma jorna. Em tempos piores, que agora também existem, vendia-se trabalho ao dia no mercado. As suas refeições eram parcas e o Inverno era frio. Quando vinha a doença eles morriam, porque Deus queria. Nós chamavam o médico a casa. A vida de nós não seria sempre abundante mas era segura e muitas vezes agradável, até porque eles eram outros, invisíveis. Isto não foi assim há tanto tempo.
Depois alguns dos nós investiram na indústria e eles vieram para as periferias das cidades. Aí havia miséria, uma pobreza bem pior do que a velha companheira do campo. Alguns dos nós faziam então caridade, mas não faziam justiça porque sem eles nós não podiam ser.
Foi quando eles decidiram fugir, que as coisas começaram a mudar. Os nós tiveram de pagar melhor aos que ficaram e queixavam-se “já não há ninguém que queira trabalhar”. Com isso os eles que ficaram começaram a poder comprar mais coisas.
O acesso ao consumo transformou eles e nós também. Nós e eles começavam a não ser tão diferentes. Mas o que mais confundiu foi vê-los uns e outros na mesma escola, no mesmo hospital, do mesmo lado no tribunal, nós com limites no que lhes podiam mandar no trabalho e eles com direitos, e todos em partidos a lutar e a votar. Para isso, como sabemos, foi preciso uma revolução. A sociedade do nós e eles não era sustentável.
Aprendemos assim que além dos melhores salários e do acesso ao consumo, foi a escola pública, a saúde para todos, os direitos no trabalho, o acesso à justiça e a democracia política o que mais contribuiu para esbater a diferença entre nós e eles. E aprendermos também que com menores salários, e com a educação, a saúde e a justiça sujeitas ao critério de acesso pelo dinheiro, tenderá a haver de novo separação entre nós e eles.
Mas desta vez tantos os nós como os eles têm experiências anteriores que lhes ensinam que não é assim porque Deus quer. É verdade que há agora muitos deles que falam línguas estrangeiras e têm religiões diferentes da maioria dos nós. Esses são quase invisíveis. Mas há também outros deles que são filhos de nós e deles: educados mas sem ocupação segura. Os nós que não fugiram para paraísos, pressentem a presença e têm medo de ambos, fecham-se em condomínios, defendem-se. Ocasionalmente eles queimam carros e bancos e centros comerciais. Será assim tão espantoso, ou apenas o aviso de que uma sociedade de nós e eles, outra vez, não é sustentável?